city-scape

segunda-feira, dezembro 19, 2005

 
MADRID, por Ana Micaela Pedrosa

Troco de sapatilhas para saltos sentada num banco, em frente a uma antiga porta de garagem demasiado carregada de desejos. Era uma oportunidade única para montar uma personagem e exigia-se rigor.

Com sesta ou sem sesta, tudo pára até às quatro, hora em que tudo recomeça e acaba tarde. A seguir, cañas, tapas e cigarros…e não jantam, para meu espanto e fome.

Contaste-me essa tua primeira noite de assombro passada em claro na ruas de Madrid a atirar flashs contras as fachadas iluminadas. Eu ria-me divertida das tuas avenidas, pelas quais descíamos e que eu já conhecia mas não pela tua mão. E dizia-te que do que eu gostava era do metro rouco arrastar-se numa chinfrineira de ferros; do que eu gostava era dos vendedores ilegais a levantarem em debanda dos passeios arrastando grandes lençóis e empurrando-nos contra as montras; e do que eu gostava era de ir sozinha à loja do chinês ver as bolachas e as gomas avulso e as batatas fritas a forrarem montras num aquário de enjoo e atracção. E tu rias-te das minhas tascas sujas.

Os madrilenos falam alto, praguejam e praticam saudáveis vícios corrosivos. Cigarros e cerveja são o sustento diário, a mais magra das dietas. Se somos uma portuguesa a pedir ice teas e uma declarada não adepta de cigarros e outros afins, desconfiam imediatamente de ti, dessa classe de gente que quer levar vidas saudáveis. São necessárias acrobacias elaboradas, provas irrefutáveis de outros vícios degenerativos. E com o tempo lá se fiam…

As espanholas são amigas fabulosas, de língua aguçada e mordaz a picar-nos sempre onde nos sentíamos mais moles, a piscarem-nos o olho e a rirem-se num hábil jogo do dito e do não dito. As palavras enrolam-se, dobram-se do avesso, trocamos olhares e a gargalhada é geral.

As espanholas saem à rua à noite, com o vestido, a meia, o sapato, o colar, o baton, o rímel, a carteira…saem com tudo. E brilham. E depois da cultura metem-se, metemo-nos, num delicioso bar escuro e apertado, esmagadas contra um balcão a picar e a beber. Com o tacão alto evitamos nos primeiros cinco minutos as beatas e as bolas de guardanapo espalhadas pelo chão.

Está quente e pegajoso o ar. Levas-me a dançar. Como em Bogotá, o que é toda uma outra história…

Cá fora um frio áspero obriga os pés cansados a arrastarem-se pelos passeios de malasaña. Há sempre ainda uma varanda que não cedeu à fadiga, e que segue a gritos e gargalhadas, e ainda um carro a cuspir música que não deixam nunca a noite cair em silêncio. Deixámo-nos nós engolir pelos túneis do metro e tecemos planos de fuga na linha azul.

Em Madrid, qual globalização qual quê… Os espanhóis apropriam-se de tudo, da mais sofisticada delicatessen francesa à bugiganga chinesa. Tudo é torcido e deformado para entrar nos jogos viciantes de malícia e humor. Não existem pens nem airbags, nem lingerie, nem regras anti-tabagistas e higienistas da comunidade. E o que por vezes é uma irritante corrupção de filmes e livros estrangeiros, outras é uma saudável resistência à uniformização.

O empregado de balcão aguarda com impaciência o nosso pedido, que deve ser rápido e preciso. Grita para o lado, atira-nos com os copos, um valor e volta-se para outro lado. Nada dos galanteios e mimos portuenses e muito menos sul americanos.
As espanholas intimidavam-te.
Era um chá. Chá quente para cortar a tarde de neve que desce lá fora. Chã preto, escuro e azedo se faz favor. Nada de tisanas adocicadas.





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