city-scape

quinta-feira, março 02, 2006

 
K L por Zé Cláudio Silva

A aproximação à cidade é feita de táxi, por uma elegante e invejável auto-estrada, impecavelmente tratada e sinalizada que liga o Norte ao Sul da Malásia, e, no caso, o aeroporto ao centro de Kuala Lumpur. Tudo muito verde, muito limpo, muito perfeito. De quando em vez vislumbram-se, por entre coqueiros e palmeiras e, possivelmente, assinalando um qualquer lugar sagrado, minaretes e cúpulas islâmicas...

Progressivamente, com o aproximar à metrópole, as densidades mudam... Surgem blocos habitacionais... Ouso identificá-los com vestígios formais do Modernismo... Civilizados... Sem apropriações nem acessórios no exterior que não sejam somente testemunhos da urbanidade, de vivência, de ocupação – soutiens, burcas, toalhas penduradas... Estaremos na Ásia-Oriental?... Lá para dentro – senti que o caminho era uma circular urbana – as torres! Aglomeradas, por sinal. A imagem da cidade é verde, horizontal, por regra plana, contrastando com torres somente dentro dos limites do Central Business District, do “Golden Triangle”.

Cidade-jardim por convivência, influência e ocupação inglesa, cidade-mundial, pela mescla de culturas, pela confluência de gentes: descendentes indígenas, chineses, indianos, indonésios, ingleses e filipinos, taoístas, confucionistas, budistas, hindús, muçulmanos, ateus e agnósticos... Cultura e Civilidade. Tolerância e convívio. Para um turista, facilmente camuflável, por sinal: cidade-contraste, riqueza, surpresa, conforto...

Perdendo-me pela cidade, a surpresa é constante, a história é presente. A estrutura é clara. Salvo a espaços, onde os bairros são estruturados e a ordem é evidente, bairros hierárquicos sem serem necessariamente previsíveis, a validade objectual da arquitectura prevalece em relação ao urbanismo estruturado. A individualidade é exaltada. A identificabilidade de princípios anglosaxónicos coloniais é afirmativa, exclamativa até... São exemplos dessa herança os expressivos edifícios neo-clássicos com reminiscências mouriscas, árabes ou bizantinas onde pontificam os arcos e as cúpulas tais como o “Sultão Abdul Samad” ou o “Royal Selangor Club” – uma versão “britânica” da arquitectura tradicional malaia ou ainda a inevitável Estação de Caminho de Ferro. Herança esta, comum das cidades que tiveram a Inglaterra como força colonizadora tais como Hong Kong, Bombaím e talvez Joanesburgo, entre outras...

Penetrando pela cidade mais recortada, mais densa, mais plana e baixa e guiando-me pelos minaretes e cúpulas das múltiplas mesquitas, às quais ìa tentando visitar, vou encontrando, por vezes, uma cidade mais surpreendente ainda, um bairro mais homogéneo, uma referência mais discreta, um templo hindú. Por entre rituais descalços, a que aderi, por entre os sons de oração vou sendo recebido como um dos demais... Os “demais”, já agora, tinham olhos afunilados, uns, outros a pele escura, mas todos uma pinta vermelha na testa e muita amizade, vontade e... comida para partilhar, sim(!), comida. Insisto no conceito “cidade-mundial”, uma adaptação social ao conceito económico-financeiro “cidade-global” de Saskia Sassen.

Continuando perdido pela cidade, ao som dos corvos e do tráfego, ao cheiro dos tandoris, dos kebabs e dos congees, mas ao ritmo dos edifícios... Uns anónimos, outros de cores fortes estilo-indiano assemelham-se, contudo, aos de La Habana ou aos art déco da orla interior portuária de Macau, estes por ora já demolidos, por sinal de um despegado pragmatismo urbanizacional macaense... Enfim... Voltando... Uns tinham arcadas que protegiam os caminhos da violência solar, outros um páteo à entrada e varandas no primeiro andar... Edifícios de bairros que ligavam os meus destinos, levemente planeados com auxílio, agora, do inevitável guia da modernidade e da preguiça - o lonely planet...

Chinatown! Resquícios de uma banalização de outras versões, tão autênticas(!), como as de São Francisco ou, possivelmente, da vizinha Singapura... Até os intérpretes feirantes de objectos falsificados, tão típicos nas “towns of China”, são “não-chineses”... Bangladeshianos(?) talvez... Por meio destes beberes da cidade vou cruzando as vistas com edifícios, uma vez mais, pontuais, singulares, profundamente objectuais e iconográficos, mas de uma contemporaneidade de exaltar... Adequados ao lugar e às culturas, sobretudo. Ensaios vanguardas como a abstratização de símbolos islâmicos e exploração dos seus valores arquitectónicos, resultaram em edifícios de fachadas modernas e contemporâneas... Exemplos do Kompleks Dayabumi ou do Museu de Arte Islâmica, actual, racional mas surpreendente, subtil na luz e exaltante no pormenor, ou da Mesquita Nacional, que edifício! Islâmico e Modernista(!?), arriscaria... Por vezes até vanguarda para os nossos dias e para os “pré-conceitos” que se atribuí, recursivamente, à presente cultura dominante, a islâmica... Ao melhor nível do que se pudera, em tempos, encontrar em Bagdad, acredito eu... Entre o moderno clássico e o racionalismo Kahniano sem deixar de fazer lembrar a subtileza e controle material mais contemporâneos de Zumthor e do domínio do uso da luz em Vals... Emociona, verga, converte!

Rumo à cidade-moderna!... “Golden Triangle”!... “Golden” pela pujante arquitectura da riqueza, do sucesso, do petróleo e do turismo, das Petronas e da KLTower... “Triangle” pela delimitação física através de três largas avenidas. A desordem e a dispersão são evidentes mas amenizadas pela densidade de vegetação e facilidade de deslocação pedonal. Uma vez mais relaciono com a estrutura e a imagem herdada dos ingleses. “Little Hong-Kong?”, “Little Mumbai?”... Os edifícios alternam entre hotéis, escritórios e os verdadeiros mega-templos da modernidade - os centros comerciais. São serpenteados pelo monorail, igualmente pragmático como o skytrain de Bangkok, na estrutura e no percurso, mas mais subtil na existência física e na distância ao construído... Pensado, integrado e parte da imagem da cidade.

Finalmente, e não querendo fazer de jovem veneziano na tentativa de deslumbrar o imperador dos tártaros... Kuala Lumpur não deslumbra na chegada, mas apaixona na estadia e deixa saudades na partida.
Pela pluralidade, múltiplas influências, múltiplos diálogos, pelas múltiplas convivências de gentes, culturas e religiões e pelas implicações que transportam para a arquitectura, para o urbanismo, para a urbanidade e aqui incluindo cheiros, paladares e sons, pela constante descoberta do improvável e do surpreendente, KL merece que seja incluída nos itinerários obrigatórios mundiais urbanos... Implica disponibilidade para a descoberta e convida à reflexão. Enfim... atrai e contagia!





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